Educação bilingue de surdos
Segundo dados preliminares do Censo Demográfico do IBGE, em 2022 o Brasil tinha 14,4 milhões de pessoas com deficiência, o que significou 7,3% da população. Porém, ao considerar somente pessoas que se declararam com “muita dificuldade” ou “não conseguir de modo algum” ouvir, identificou-se em torno de 2,6 milhões de pessoas que poderiam ser consideradas surdas. Os dados do mesmo Censo realizado vinte anos antesapontavam que haviam à época 5.735.099 pessoas quese apresentaram “incapaz, com alguma ou grande dificuldade permanente de ouvir”, sendo 389.430 da Região Norte, 1.861.687 da Região Nordeste, 2.219.320 da Região Sudeste, 898.482 da Região Sul e 366.180 da Região Centro-Oeste.
A imprecisão de dados sobre o perfil sociodemográfico dessa parcela significativa da população expressa uma demanda. Esta falta de dados mais assertivos explica a invisibilidade vivenciada por essas pessoas surdas e aexistência dedemandas que emergem em distintos contextos (educacionais, comunicacionais e sociais), e que afetam as comunidades de pessoas surdas de todo o Brasil que se expressam por meio da Língua de Sinais.
A Lei Federal 10.436, de 24 de abril de 2002, ao reconhecer a Libras como língua, se configurou um avanço ao afirmar que o ordenamento jurídicoratificava a existência de uma forma de comunicação e expressão de natureza visual-motora. Em outras palavras, foi um marco histórico o reconhecimento legal de um sistema linguístico para transmissão de ideias e fatos, próprio de comunidades de pessoas surdas, a partir do uso de sinais, de forma sistematizada.Esta legislação ainda atrelou o uso da Libras com o ensino da modalidade escrita da Língua Portuguesa durante os processos educacionais para os alunos surdos, em caráter obrigatório.
Já o Decreto Federal n° 5626, de 22 de dezembro de 2005, que regulamentou a legislação acima, determinou que a Libras fosse inserida como disciplina curricular obrigatória nos cursos de formação de professores para o exercício do magistério no Ensino Médio e Superior, além dos cursos de Fonoaudiologia, tanto de instituições públicas como privadas de todo o país. Para as demais formações,a Libras se tornou uma disciplina curricular optativa e desde então não se tem perspectiva de que isso avance como obrigatório em outras áreas de formação, sobretudo, no campo do Direito, da Saúde e demais políticas sociais.
A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, Lei Federal n°. 13.146/2015 também se tornou um marco histórico ao unificar e consolidar uma série de políticas públicas para pessoas com deficiência previstas em legislações esparsas, nas quais se incluem as surdas, com o direito à comunicação e informação acessível com o uso de Libras e tecnologias assistivas, o direito à educação bilingue para surdos, o acesso a serviços de saúde, reabilitação e assistência, com profissionais capacitados em Libras, dentre outros.
Outro avanço foi a promulgação da Lei Federal n° 14.191/2021, que incluiu a Educação Bilingue para Surdos como modalidade de ensino independente na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN). Ao reconhecer a Libras como primeira língua e a Língua Portuguesa escrita como segunda língua para estudantes surdos, surdo-cegos e com deficiência auditiva que optaram por essa modalidade, a legislação determina que sua oferta inicie ao zero ano, na educação infantil, se estendendo ao longo da vida. Para sua execução prevê a oferta de materiais didáticos e professores bilíngues, com formação e especialização adequadas em nível superior.
A pauta da educação bilíngue se dá em razão da diferenciação sociolinguística entre pessoas surdas e deficientes auditivas.As pessoas surdas, nesta perspectiva, são aquelas para quais a sua formação identitária se pauta pela surdez. Trata-se de perceber as vivências e experiências pessoais dadas numa modalidade espaço-visual, o que significa optar pela utilização da Língua de Sinais do país como forma principal de comunicação, em detrimento de qualquer possibilidade de práticas de oralização. Neste sentido, esta pessoa se estabelece no mundo a partir das questões linguísticas específicas de sua realidade enquanto sujeito surdo: é por meio da Libras que compreende a si mesmo, o(s) outro(s) e o mundo à sua volta – muitas vezes constituído a partir das contribuições vivenciadas junto às comunidades de surdos, que são as associações municipais organizadas por surdos, familiares, interpretes e amigos.
Já o deficiente auditivo, também nesta perspectiva sociolinguística, é aquele sujeito para o qual a utilização da Libras não se faz necessária, satisfatório. Prefere-se um acompanhamento eminentemente clínico, com práticas de recuperação da surdez (por meios de aparelhos auditivos e, muitas vezes, de implantes cocleares), e de oralização, cujo o estímulo é a utilização de uma língua de modalidade oral-auditiva. Socialmente, esta pessoa convive na sociedade em geral, sem se identificar com os espaços próprios dos usuários da Língua de Sinais.
O foco é justamente a necessidade de se reconhecer a diferença da forma de acessibilidade necessitada. Os alunos surdos necessitam de uma acessibilidade comunicativa em sua Língua de Sinais, uma vez que muitos destes educandos, nos primeiros anos do processo formal de ensino, ainda não constituíram a sua própria língua, razão pela qual não estão aptos a compreender o que o profissional tradutor-intérprete de Libras se propõe a executar, isto é, meramente, traduzir e interpretar.
Justifica-se que muitos alunos surdos somente passam a ter uma língua própria no contexto escolar e no convívio com seus semelhantes, isto é, com outras crianças e adultos surdos, usuários da Libras. Desta forma, até que tal experiência ocorra, normalmente, ficam excluídos dos processos educativos se comparados com os alunos ouvintes – que já chegaram a este espaço com um vocabulário linguístico estabelecidos no contexto familiar, a partir dos espaços sociais nos quais convivem.
A educação bilíngue propõe a existência de escolas ou classes específicas para os surdos nos primeiros anos da Educação Básica. Trata-se também de uma acessibilidade ao currículo, quando o mesmo se adapta para ser executado a partir do uso da Língua de Sinais com esse público. Visa apreender o conteúdo previsto na matriz curricular ao mesmo tempo em que adquire fluência na Língua de Sinais. Neste sentido, o aluno surdo aprende juntamente com outras crianças surdas e com um professor (de preferência surdo, ou ouvinte fluente em Libras). O papel socializador da escola permanece, uma vez que esta classe se encontra em escolas regulares, e as atividades coletivas (recreios, esportivas, datas comemorativas, etc.) também fazem parte do planejamento para os alunos surdos.
Porém, a execução da Educação Bilingue de Surdos, no campo da prática, ainda é utópica. O Ministério da Educação (MEC), por meio da Comissão Nacional de Educação Bilingue de Surdos (CNEBS), que conta com a participação da sociedade civil e da comunidade surda, encontra-se em fase de implementação da proposta, com desafios na formação docente e contratação de professores que sejam fluentes em Libras, na universalização da oferta em todo o país com a criação de polos, e na integração da Libras como primeira língua de fato para o público para o qual ela se destina. Embora a legislação preveja a oferta a partir da educação infantil, a expansão da educação bilíngue para todas as etapas e em todas as regiões do Brasil aindanão passa de um sonho. Falta planejamento estratégico que seja construído de forma coletiva e que considere as condições financeiras e políticas necessárias para sua implementação a curto, médio e longo prazo, pactuado junto aos estados federativos e os municípios. Por outro lado, a integração do ensino bilíngue nas escolas comuns tem exigido adaptações de metodologias, formação de equipes, recursos e infraestruturas adequados.
Por outro lado, uma outra demanda a ser pautada é o ensino obrigatório de Libras para todos os alunos na Educação Básica. A proposta de Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva é fazer com que alunos com deficiência sejam incluídos no contexto escolar em iguais condições, se comparados com os demais alunos – respeitando as especificidades de cada tipo de deficiência. No entanto, é certo que alunos surdos incluídos nas classes regulares não possuem força significativa nas relações sociais estabelecidas, que são eminentemente de poder. No discurso e na prática, suas opiniões e leituras de contexto acabam, em muitas vezes, pretéritas em razão de sua condição e possibilidade de fala – o outro que necessita de estar com os não deficientes e assim se sentir valorizado e incluídos nos processos educativos.O aprendizado obrigatório da Língua de Sinais pelos demais alunos ouvintes permitiria o um envolvimento maior dos alunos surdos no contexto de sala de aula. A partir de uma formação bilíngue, crianças surdas e ouvintes, estariam aptas para estabelecerem suas relações de aprendizagem e socialização de forma equânime. Algumas ações esparsas tem sido realizada em alguns municípios e projetos de leis a respeito estão tramitando no Congresso Nacional, porém em passos lentos.
Para além destas questões, ainda é uma demanda a existência de materiais didáticos-pedagógicos adaptados em Língua de Sinais. O processo de ensino-aprendizado da criança surda na fase de formação escolar seria melhor trabalhado caso os docentes tivessem acesso à tais materiais. Destaca-se a necessidade de acessibilidade digital para os materiais audiovisuais, que ainda não estão completamente adaptados com a tradução-interpretação em Libras, a partir de tecnologias assistivas.
Outro avanço que também apresenta demandas foi a aprovação da Lei Federal n° 14.704/2023, que alterou a Lei Federal n° 12.319/2010, e regulamentou o exercício profissional e as condições de trabalho do profissional tradutor, intérprete e guia-intérprete da Língua Brasileira de Sinais (Libras). Para atuar, o profissional pode ser diplomado em curso de educação profissional técnica de nível médio em Tradução e Interpretação em Libras;em curso superior de bacharelado em Tradução e Interpretação em Libras – Língua Portuguesa, em Letras com Habilitação em Tradução e Interpretação em Libras ou em Letras – Libras; ou diplomado em outras áreas de conhecimento, desde que possua diploma de cursos de extensão, de formação continuada ou de especialização, com carga horária mínima de 360 (trezentas e sessenta) horas, e que tenha sido aprovado em exame de proficiência em tradução e interpretação em Libras – Língua Portuguesa. Apesar do avanço, sindicatos e representantes da categoria tem tecido críticas em torno da falta de implementação da legislação e de pontos que sofreram vetos presidenciais, tais como a possibilidade de atuação como profissional apenas com formação técnica de nível médio, o que tem sido considerado um retrocesso na valorização da categoria, que busca por reconhecimento de sua formação acadêmica que é continuada para atuar na profissão. Outra demanda a falta de fiscalização, uma vez que a legislação também prevê a jornada de trabalho de 6 horas diárias ou 30 horas semanais, sendo que o trabalho de tradução após uma hora deve ser realizado com revezamento por, no mínimo, dois profissionais, o que vem sendo desrespeitado inclusive pelo poder público em diversos contextos.
Neste quesito, é necessário refletir a qualidade da formação continuada de profissionais tradutores-interpretes de Libras, que atuam no sistema educacional, e suas condições de trabalho. Ainda é uma realidade que muitos desses profissionais não possuem uma formação superior em cursos de licenciaturas. Neste sentido, há carênciaspedagógicas e didáticas que dificultam para uma atuação no contexto educacional – até mesmo para se pautar as atividades específicas enquanto profissional, a partir da compreensão das normativas educacionais sobre os espaços e papéis educativos dos atores sociais envolvidos. Por outro lado, a participação da Comunidade Surda nos espaços de formulação e acompanhamento de políticas públicas educacionais ainda é tímida. É necessário que os surdos se percebam essenciais nas discussões sobre a educação em espaços de controle social, como os Conselhos municipais, estaduais e nacional de Educação. A participação nestes espaços permitiria relações de poder aos surdos para que se pautem as demandas educativas a partir da educação bilingue para surdos.

Edmarcius Carvalho Novaes é autor do livro “Autor do livro “Surdos – educação, direito e cidadania” (WAK Editora). Graduado em Pedagogia, Filosofia e Letras Libras.Bacharel em Direito. Especialista em Educação e Inclusão: Língua Brasileira de Sinais. Doutor em Ciências Humanas. Professor e pesquisador universitário.