A identidade é uma construção relacional. Ninguém se conhece fora do olhar do outro. É nas trocas cotidianas, nos gestos e nas palavras que o sujeito vai se percebendo, validando e reorganizando quem é. Mas o que acontece quando esse olhar externo chega carregado de estigmas, preconceitos e expectativas distorcidas? Para a pessoa com deficiência, essa é uma questão central: o olhar do outro pode ser tanto fonte de reconhecimento quanto de ferida.
Desde cedo, a criança com deficiência percebe que o seu corpo ou o seu modo de agir provocam reações diferentes. Às vezes é o excesso de proteção; em outras, o afastamento disfarçado de indiferença. Esses olhares e comportamentos funcionam como mensagens silenciosas, porém profundamente marcantes, que dizem quem ela é antes mesmo que possa se descobrir. Assim, o processo natural de autoconhecimento passa a ser mediado por uma imagem social construída sobre a deficiência e não sobre o sujeito.
A psicologia entende que o “eu” se estrutura a partir da experiência de ser visto, nomeado e reconhecido. Quando o reconhecimento é substituído por rótulos como “coitadinho”, “guerreiro” ou “inspiração”, a relação com o próprio eu torna-se confusa. O indivíduo se vê aprisionado entre o desejo de ser aceito e a sensação de nunca corresponder completamente ao que esperam dele. É o conflito entre ser e ser visto.
Em muitos casos, esse conflito gera um movimento psíquico de compensação. Para escapar da imagem de incapaz, a pessoa busca demonstrar força e competência em tudo o que faz. É o fenômeno que se aproxima daquilo que Alfred Adler chamou de “compensação do sentimento de inferioridade”. Em outros casos, ocorre o movimento oposto: o sujeito internaliza o olhar capacitista e passa a acreditar que realmente vale menos, retraindo-se social e emocionalmente.
Ambos os caminhos têm em comum o sofrimento invisível de tentar caber em moldes criados por outros. Por isso, a psicologia da deficiência precisa atuar não apenas no nível individual, mas também no simbólico e no coletivo, desconstruindo as narrativas que associam valor humano à performance, à aparência ou à normalidade.
Construir uma identidade saudável, nesse contexto, significa resgatar o direito de definir a si mesmo. É um processo de reconstrução subjetiva: sair do espelho social distorcido e criar uma nova forma de se enxergar. Esse movimento costuma ser lento, pois implica reconfigurar anos de mensagens internalizadas. No entanto, é também profundamente libertador.
O espaço terapêutico pode servir como uma nova cena de reconhecimento. Ali, o sujeito é escutado sem o filtro da deficiência e, justamente por isso, começa a se ver de outro modo. A escuta empática e a validação emocional ajudam a distinguir o que pertence à experiência pessoal e o que foi introjetado pela sociedade. É o início de uma autonomia emocional que sustenta a autonomia social.
Contudo, a responsabilidade não é apenas individual. A transformação precisa ser também coletiva. Enquanto o olhar social continuar preso à lógica da comparação — “ele é quase normal”, “ela supera os limites” —, continuará produzindo feridas na subjetividade. É necessário deslocar o foco do déficit para a diversidade, do corpo para a pessoa, do estigma para a história.
Ver alguém com deficiência não deveria evocar pena nem admiração exagerada, mas simplesmente reconhecimento humano. Toda pessoa deseja, antes de tudo, ser vista como sujeito de desejos, medos, capacidades e fragilidades, e não como um símbolo de limitação ou heroísmo.
Quando o olhar social se humaniza, ele devolve ao outro o direito de existir sem precisar justificar a própria presença. E é nesse ponto que a psicologia se encontra com a ética e com a cultura: na construção de uma sociedade em que o ser vale mais do que o ser visto.
No fim das contas, a questão não é apenas sobre deficiência, mas sobre humanidade. Todos nós, de algum modo, carregamos a necessidade de sermos vistos de forma verdadeira. A diferença é que, para a pessoa com deficiência, essa busca é atravessada por barreiras externas e internas que exigem coragem para serem superadas.
Ser visto é importante, mas ser reconhecido é essencial.
E a verdadeira inclusão acontece quando o olhar que observa deixa de classificar e passa a compreender, quando o espelho social não distorce, mas reflete a inteireza do ser.
Ser, antes de ser visto. Porque a identidade não nasce do olhar que julga, mas do olhar que acolhe.

Emílio Figueira é jornalista, psicólogo, psicanalista e escritor, com 40 anos de experiência na área da inclusão. Autor dentre outros, dos livros “Psicologia e Inclusão” e “As Pessoas Com Deficiência Na História Do Brasil”